Epidemiologista que alertava contra Covid-19 perde pai que "preferia acreditar no WhatsApp"

21/01/2021 21/01/2021 12:45 114 visualizações
Epidemiologista Maria Cristina Willemann relata a dor da morte do pai, de 65 anos, que ignorou cuidados relacionados ao novo coronavírus

Desde os primeiros casos confirmados do novo coronavírus no país, no fim de fevereiro de 2020, a enfermeira e epidemiologista Maria Cristina Willemann tem alertado os moradores de Santa Catarina sobre a importância de adotar medidas para conter a propagação do vírus.

Com mestrado e experiência em epidemiologia (área que estuda o processo de doenças em populações e propõe estratégias para controlá-las), ela tem sido entrevistada por diversos veículos de comunicação desde o começo da pandemia.

Em 10 de agosto, por exemplo, Maria Cristina fez um alerta sobre o avanço do novo coronavírus em Santa Catarina em uma reportagem do Jornal Hoje, da Rede Globo.

"É importante que a população entenda que nós ainda estamos em franca expansão da pandemia em nosso Estado e é preciso tomar cuidado. Não frequentem locais que não estejam adequados. Não frequentem locais onde pode haver qualquer aglomeração de pessoas", disse em entrevista ao telejornal.

No dia seguinte ao alerta dado no telejornal, a profissional de saúde vivenciou as consequências da Covid-19 em sua própria família: o pai dela, o aposentado Cesar Willemann, de 65 anos, foi internado em estado grave com a doença. Dias depois, ele morreu.

Para a epidemiologista, a situação do pai ilustra os riscos da falta de prevenção à doença causada pelo novo coronavírus. Segundo ela, o aposentado contraiu o Sars-Cov-2 (nome oficial do vírus) porque não seguiu as orientações sanitárias dadas pela própria filha.

"É muito frustrante saber que estou desde o começo da pandemia trabalhando para evitar o adoecimento das pessoas, mas não consegui convencer o meu próprio pai a seguir as medidas adequadas. É um misto de frustração e raiva", desabafa Maria Cristina em entrevista à BBC News Brasil.

A desinformação durante a pandemia

Nas primeiras semanas da pandemia, em março, Cesar ficou isolado em casa junto com a esposa, em Lages (SC). Maria Cristina conta que a comoção mundial em decorrência do novo coronavírus preocupou o pai. Nos meses seguintes, porém, ele voltou a sair de casa.

"Aos poucos, ele foi voltando à rotina normal. Como ele saía de casa várias vezes e não pegava o coronavírus, pode ter pensado que não pegaria em nenhum momento. Então, cada vez mais foi voltando às atividades de antes", diz a epidemiologista.

Maria Cristina acredita que notícias negacionistas sobre o novo coronavírus, compartilhadas massivamente no WhatsApp e nas redes sociais, fizeram com que o pai duvidasse dos riscos da Covid-19.

"Acho que muitas pessoas morrem por pensar, como o meu pai, que não vai acontecer com elas. Essas pessoas podem pensar que estão protegidas de alguma forma, acreditam que algum tratamento funciona ou pensam que há uma imunidade de rebanho que irá protegê-las", declara a epidemiologista.

Em relação à imunidade coletiva da Covid-19, pesquisadores apontam que ela somente existirá quando grande parte da população for vacinada contra o novo coronavírus.

E em relação aos tratamentos que circulam pela internet e costumam ser defendidos até mesmo por profissionais de saúde, entidades médicas apontam que não há, até o momento, remédio eficaz para a Covid-19. Os medicamentos recomendados por especialistas no momento, que não incluem cloroquina, ivermectina ou azitromicina, servem somente para amenizar os sintomas, como febre ou tosse.

César acreditava que a cloroquina, defendida intensamente pelo presidente Jair Bolsonaro e pelo Ministério da Saúde, poderia salvá-lo da Covid-19. Porém, a filha tentava alertá-lo que os estudos comprovam que o medicamento não ajuda pacientes com o novo coronavírus e explicava que as entidades médicas não recomendam o remédio contra o Sars-Cov-2.

"Por mais que eu falasse tudo pelos critérios científicos, ele preferia acreditar nas conversas dos amigos, nas mensagens de WhatsApp... Ele pensava: se para tudo tem um tratamento, por que para a Covid não vai ter?", relata a epidemiologista.

"Ele recebia as informações falsas, como sobre a cloroquina, pelo WhatsApp, que era o meio de comunicação que ele mais usava. Por mais que dissessem na televisão que não tinha evidência científica sobre a cloroquina, ele preferia acreditar no WhatsApp", acrescenta Maria Cristina.

Segundo a epidemiologista, o aposentado não se considerava um fiel seguidor do presidente. "Mas como a maioria da população, o meu pai acreditava nele (Bolsonaro). Ele via as coisas que o presidente falava em defesa da cloroquina e acreditava", diz.

Desde o início da pandemia, epidemiologista tem dado diversas entrevistas para orientar a população sobre os cuidados para evitar a propagação do coronavírus — Foto: Arquivo Pessoal

Desde o início da pandemia, epidemiologista tem dado diversas entrevistas para orientar a população sobre os cuidados para evitar a propagação do coronavírus — Foto: Arquivo Pessoal

Para ampla maioria dos especialistas, Bolsonaro atrapalhou o combate à pandemia. Desde os primeiros casos no país, o presidente mostrou-se contrário às medidas recomendadas por especialistas para conter a propagação do coronavírus. Por diversas vezes, ele criticou o isolamento social, atacou o uso de máscaras e desdenhou da CoronaVac, que nesta semana se tornou a primeira vacina a ser aplicada no país.

Levantamentos apontam que as medidas de isolamento social foram seguidas em menor escala por aqueles que deram ouvidos à postura negacionista de Bolsonaro. Um exemplo dessa situação foi demonstrado no estudo "Ideologia, isolamento e morte: uma análise dos efeitos do bolsonarismo na pandemia de Covid-19", abordado em reportagem da Folha de S.Paulo em meados do ano passado.

O levantamento, divulgado em junho por pesquisadores da Universidade Federal do ABC (UFABC), da Fundação Getúlio Vargas e da Universidade de São Paulo, apontou que a taxa de isolamento social diminuiu e mais pessoas morreram proporcionalmente nos municípios que mais votaram em Bolsonaro em 2018.

O bar do dominó

Na região em que morava, César era considerado um dos melhores jogadores de dominó. Durante a pandemia, conta Maria Cristina, ele continuou frequentando um bar para praticar a atividade. A filha acredita que foi justamente isso que fez com que o idoso contraísse o coronavírus.

"Tenho plena convicção de que ele contraiu o coronavírus no bar. Soube que muitos frequentadores do local também adoeceram no mesmo período, porque (entre o fim de julho e o começo de agosto) foram semanas de altíssima transmissão do vírus em Lages", diz a epidemiologista.

"O bar era um local fechado, com algumas janelas abertas. Havia uma placa que dizia que o uso da máscara era obrigatório, mas não era isso que acontecia na prática, porque as pessoas bebiam e jogavam ao mesmo tempo. O meu pai, com certeza, jogava sem máscara", acrescenta Maria Cristina.

Ela comenta que ainda que estivesse com máscara, Cesar não se preocupava em usá-la adequadamente. "Ele se sentia incomodado e deixava o nariz pra fora", relata.