Gestor de boa-fé não deve temer a Lei de Abuso de Autoridade

20/03/2020 20/03/2020 09:39 145 visualizações

A lei tipifica como crime, por exemplo, a decretação de medida de privação de liberdade que não se enquadre nas hipóteses previstas legalmente

Valdir Simão* Em vigor a partir deste mês, a Lei de Abuso de Autoridade (Lei Federal nº 13.869/19) traz graves consequências para quem pratica uma série de atos definidos como abusivos. As sanções vão desde a obrigação de indenizar o dano causado e a inabilitação para o exercício de cargo, mandato ou função pública, até a prisão.
A lei tipifica como crime, por exemplo, a decretação de medida de privação de liberdade que não se enquadre nas hipóteses previstas legalmente, e o impedimento, sem justa causa, de entrevista particular entre o preso e seu advogado. Não são fatos isolados os abusos perpetrados por agentes públicos. Nesse sentido, o texto legal representa um importante avanço na preservação das garantias individuais.
Diversas classes de agentes públicos, no entanto, têm encarado a Lei de Abuso de Autoridade com preocupação compreensível, uma vez que, no Brasil, o controle da administração pública ainda tem um grande foco na pessoa do gestor — fato conhecido como “fulanização do controle”. Nesse contexto, a promulgação de uma lei que controle ainda mais a atuação do administrador público — e preveja sanções graves — pode, de início, causar temor e insegurança.
De fato, alguns pontos da Lei nº 13.869/19 podem se estender aos gestores públicos e merecem atenção, principalmente durante a efetivação dos poderes disciplinar e de polícia. O texto tipifica como crime o ato de “inovar artificiosamente, no curso de diligência, de investigação ou de processo, o estado de lugar, de coisa ou de pessoa, com o fim de eximir-se de responsabilidade ou de responsabilizar criminalmente alguém ou agravar-lhe a responsabilidade. (...) requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa”.
Ainda, é conduta abusiva “antecipar o responsável pelas investigações, por meio de comunicação, inclusive rede social, atribuição de culpa, antes de concluídas as apurações e formalizada a acusação”.
As três condutas citadas, entre outras tipificadas na referida lei, chamam a atenção para a necessidade de cuidado e lisura por parte do administrador público durante a condução de processos administrativos sancionadores, de investigação ou fiscalização, haja vista a possibilidade da utilização dos meios estipuladores de sanções sem a indispensável apuração da base factual — eventualmente para deliberadamente prejudicar o investigado, a partir da condução de um processo desancorado da legalidade. Apesar das graves sanções e do maior controle sobre os agentes, o gestor de boa-fé não deve temer a nova Lei e não pode usá-la como pretexto para não executar as funções que lhe são próprias.
O § 1º do art. 1º da Lei de Abuso de Autoridade prevê que as condutas descritas na Lei serão constituídas como crimes apenas se tiverem “finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal”. Na mesma linha, o § 2º do Art. 1º prevê que a “divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade”. Ou seja, ao passo que a Lei nº 13.869/19 encerra diversos tipos penais que vão no sentido de disciplinar a atuação dos agentes estatais e oferecer garantias às pessoas físicas e jurídicas, também conta com mecanismos de proteção ao administrador que age envolto em probidade.
O texto deixa claro que não basta a produção dos atos previstos na lei, mas, também, a presença do dolo específico previsto no dispositivo. O agente fica assegurado de que o seu ato, se legalmente fundamentado, não será abusivo, ainda que a interpretação legal ou factual destoe de outras interpretações. Por fim, ressalta-se a importância da Lei de Abuso de Autoridade para a efetivação dos preceitos básicos de um Estado democrático de direito, não havendo, ao que parece, nenhum cerceamento de ação ou grandes dificuldades impostas ao administrador público.
Para os gestores que porventura sentiram-se inseguros com a nova lei, o conselho é seguir a velha regra basilar de todo o direito público: tudo aquilo que não é autorizado por lei, proibido o é. A tal máxima, acrescenta-se a importância de motivação e fundamentação adequada dos atos administrativos, uma boa dose de bom senso e a lembrança de que não importa o posto que se ocupa na Administração, a finalidade do trabalho do agente público será sempre uma só: o bem coletivo.